Não é de hoje que a Administração Pública detém a prerrogativa de revisar por si mesma os atos que pratica. Há muito se tem por assentado em nossa jurisprudência que a anulação de atos jurídicos não é de competência exclusiva do Poder Judiciário (STF, RE 27.031, DJ 04/08/1955), podendo ser obtida a partir de postulação perante o órgão público que emitiu o ato administrativo tido por ilegal (artigo 5º, XXXIV, alínea “a”, CF/88). Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute terem sido ilegalmente praticados (STF, RE 524.296, DJ 13/02/2012), podendo fazê-lo sem prévia provocação, inclusive. Afinal, nas palavras do ministro Hermes Lima, “não há lei que o proíba” (STF, MS 12.512, DJ 01/10/1964).
Assim o é porque a Administração Pública está presa à lei, cuja observância não só se impõe no momento em que o ato administrativo é emanado, mas também enquanto detiver aptidão para produzir efeitos nas relações jurídicas existentes. Em não existindo causas de cristalização do ato — como, por exemplo, sentença judicial transitada em julgado a tê-lo por legal — é dado à Administração o dever de reapreciá-lo em cumprimento ao princípio da legalidade (artigo 37, CF/88).
Ainda que, à primeira vista, tenha sido considerado válido, o ato administrativo pode ser anulado por uma ilegalidade posteriormente percebida, portanto. Isso, além de ser mandamento constitucional, tem simultâneo condão de desafogar o Judiciário de demandas que, justamente pelo poder de autotutela (Súmula STF nº 346), podem ser diretamente resolvidas pelas partes interessadas.
A construção do sistema de normas que tratam das etapas de cobrança dos tributos, caminhando nessa exata linha, sempre se norteou pela prerrogativa de revisão dos atos administrativos no âmbito da própria Administração. Um bom exemplo disso veio com a Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80), na definição da natureza da inscrição em dívida ativa. Se, antes, o ato de inscrever débitos em dívida ativa era considerado de natureza meramente contábil porque feito para realocação orçamentária do tributo enquanto receita corrente (artigo 11, §4º, Lei nº 4.320/64), após a edição da, à época, nova lei, a inscrição tornou-se ato de controle administrativo da legalidade (artigo 2º, §3º).
Pelo que se vê, ao passo que conferiu à Administração a prerrogativa de constituir por si mesma um título executivo extrajudicial capaz de gerar limitações à propriedade (artigo 185-A, CTN), a inovação legal impôs uma etapa de reanálise obrigatória da legalidade.
No processo tributário, o exercício da competência de revisar atos administrativos não é, pois, mera faculdade, é dever. Por isso, nos casos em que o crédito tributário foi constituído à revelia da vontade do contribuinte, a legalidade deve sempre ser checada em, pelo menos, duas oportunidades: na do lançamento e, caso mantido o inadimplemento, no da inscrição em dívida ativa. Independentemente de provocação, os órgãos públicos integrantes da administração tributária (artigo 145, § 1º, CF/88) são chamados a reavaliar a observância da lei na constituição e na cobrança dos créditos tributários. Na esfera federal, tal atribuição historicamente cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (artigo 4º, inciso XIII, Lei nº 2.642/1955).
Por outro lado, dadas as complexidades da tributação e do processo administrativo tributário, o exercício de autotutela pela administração tributária na etapa da inscrição em dívida ativa não é pleno, apesar de amplo. Por ser feito de ofício e sem a participação do devedor, fica adstrito à verificação de vícios formais eventualmente ocorridos no ato de lançamento (artigo 10, Decreto nº 70.235/72), de vícios procedimentais talvez praticados no correr do contencioso administrativo e de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos dos créditos tributários (artigos 151, 156 e 180, CTN). Não alcança nem mesmo todas as hipóteses que legalmente permitem a revisão de lançamento (artigo 149, CTN), pois algumas delas dependem de produção de prova com a necessária colaboração do contribuinte (incisos IV e VIII), o que não é possível fazer ex officio. Não implica — nem poderia — revisão do mérito administrativo, pois, se assim o fosse, transmutar-se-ia o controle de legalidade da inscrição em uma nova instância recursal do processo administrativo tributário.
Apesar dessas limitações, não há como negar que a inserção do controle de legalidade nessa específica etapa do processo de positivação da norma tributária trouxe aprimoramentos à segurança jurídica. Ao transformar em dever a faculdade que o Supremo Tribunal Federal há tempos reconheceu pertencer à Administração Pública (Súmula STF nº 473), a reconstrução do sistema jurídico de execução fiscal feito na Lei nº 6.830/80 viabilizou uma dupla verificação da legalidade no fenômeno da tributação, o que é sempre de bom tom, dado o caráter vinculado da atividade administrativa na apuração, constituição e cobrança dos tributos (artigo 3º, CTN).
Além disso, pavimentou o terreno para a construção normativa de outras possibilidades de resolução de potenciais conflitos entre Fisco e contribuintes na esfera de atuação da administração.
No âmbito federal, as inovações trazidas pela Portaria PGFN nº 33/2018 vêm ao encontro dessa perspectiva, a começar pelo alargamento do espectro do controle de legalidade pela legitimação da não cobrança de créditos tributários cujo fundamento tenha sido declarado indevido pela jurisprudência pacífica dos tribunais superiores (artigo 5º, §1º). Mas não só por isso. Sobretudo por introduzir institutos jurídicos até então inexistentes — como a oferta antecipada de garantia (artigo 8º) — ou pouco utilizados após a inscrição em dívida ativa — como o pedido de revisão de dívida inscrita (artigo 15). Todos com o propósito de qualificar os créditos tributários que venham a ser levados à cobrança perante o Judiciário, e de reduzir uma litigiosidade potencialmente estéril, já que passa a ser depurada ainda na esfera administrativa.
Não há perdedores quando o Estado aprimora o controle administrativo de legalidade: todos ganham. Inviabiliza-se uma cobrança tributária feita a qualquer custo. Por decorrência, diminui-se a tentação de se adotar condutas meramente arrecadatórias, a serviço de políticas transitórias de governo e em desrespeito à legalidade. E tudo isso acrescido de uma vantagem estratégica: os mecanismos multiportas de controle de legalidade não encontram barreiras na legislação para serem cada vez mais aperfeiçoados, pois, como ressaltado pelo ministro Hermes Lima lá nos idos dos anos 60, “não há lei que o proíba” — vale repetir.
Fonte: Conju