Em uma franca homenagem ao princípio do mors omnia solvit (“a morte soluciona tudo”), jurisprudência mais antiga afirmava que se antes de transitar em julgado a ação de divórcio direto viesse a falecer um dos cônjuges, extinguir-se-ia o processo sem julgamento do mérito.
Em menos palavras, em situações que tais, o divórcio post mortem era natimorto, elegendo-se, então, a dissolução do casamento válido pela morte de um dos cônjuges (artigo 1.517, I, do Código Civil), em detrimento do direito potestativo de quem, no estado de separação de fato e em autonomia de sua vontade, já manifestara o interesse de finalizar a sociedade conjugal pelo divórcio (artigo 1.517, IV, CC), dissolvendo por essa opção o seu casamento (artigo 1.571 §1º, CC). Precisamente, pretender adquirir o seu estado civil de divorciado(a) e não, por fato superveniente, assumir o de viuvez, que não lhe seria relevante (ou desejado), em confusão jurídica dos fatos.
Assim entendeu-se pela opção da morte superveniente, no curso da ação, para a perda do seu objeto, não obstante já manifestada a vontade para a obtenção do divórcio, com os efeitos internos próprios a partir da distribuição da ação, em prol do(a) promovente. No ponto, impende anotar a regra do caput do artigo 158 do Código de Processo Civil de 1973, renovada pelo caput do artigo 200 do atual CPC/2015, segundo o qual o(s) ato(s) das) parte(s) consistente(s) em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição de direitos processuais. Em ser assim, razão não haveria para a perda de objeto, em desprezando o valor jurídico da pretensão já deduzida em juízo, conjunta ou individualmente.
Diante de julgado proferido pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na Apelação Cível nº 1.04443.06.028547-7/0001 (DJMG, de 04.05.2007), nessa linha de entendimento, interessou bastante refletir sobre a vedação da época ao divórcio post-mortem, pelo que em artigo do mesmo ano, incursionamos em diversas reflexões no tema [1].
Pois bem. Certo que o estado civil de divorciado difere, substancialmente, do estado civil da viuvez, pelos efeitos jurídicos deles irradiados, bem específicos, questão relevante se torna saber possível ou não o divórcio post mortem.
A propósito:
“A controvérsia reside justamente em dizer qual desses motivos ocorreu primeiro, se prevalece ou não a manifestação de vontade das partes de se divorciarem, ainda sem a chancela judicial. E tal importa porque a dissolução do casamento por uma ou outra causa surte efeitos jurídicos próprios e distintos, sendo a morte do cônjuge, por exemplo, fato gerador de direitos sucessórios e previdenciários, e o divórcio, de direitos à partilha de bens e pensão alimentícia” (TJ-MG, 7ª Câmara Cível, Ap. 1.0000.17.071266-5/001, j. em 29.05.2018).
A questão não se afigura, portanto, meramente acadêmica. Muito ao revés, ganhou maior relevo jurídico justamente a partir da Emenda Constitucional nº 66/2010, que coloca o divórcio no direito constitucional como um direito potestativo e incondicional de cada qual dos cônjuges. Tudo diante da nova redação ao artigo 226, §6º, da Constituição Federal, com a supressão dos requisitos temporal e causal.
Agora, também das Minas Gerais surge uma jurisprudência consolidada a respeito, quando em julgamento proferido em 5 deste mês, pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, resultou assentado, em acórdão, que:
“(…) Nos casos em que já exista manifestação de vontade de ambos os cônjuges de se divorciarem, a superveniência da morte de um dos cônjuges no curso do processo ação não acarreta a perda de seu objeto. A superveniência da morte de um dos cônjuges, não é suficiente para superar ou suplantar o acordo de vontades anteriormente manifestado, o qual possui valor jurídico e deve ser respeitado, mediante a atribuição de efeitos retroativos à decisão judicial que decreta o divórcio do casal (…)” [2].
Ou seja, “com a apresentação da petição inicial e da contestação, aperfeiçoou-se a manifestação de ambas as partes acerca da expressa concordância quanto à finalização da sociedade conjugal, por meio do divórcio (inciso IV do artigo 1.571 do CC/02 c/c inciso IV do artigo 2º da Lei 6.515/1977)”.
No caso recente, o recurso foi manejado pela filha do divorciando, falecido em novembro passado, vítima de Covid-19, depois de, em figurando no polo passivo da lide, pronunciar-se no processo a favor do divórcio, restringindo a controvérsia judicial à discussão de eventual união estável antecedendo ao casamento e à partilha dos bens. O juízo de origem, da 6ª Vara de Família de Belo Horizonte, houve de extinguir o processo, sem julgamento de mérito, diante do evento morte do cônjuge varão, com os efeitos de tornar extinta a sociedade conjugal existente. O recurso, assinado pelo advogado Ricardo Gorgulho Cunnigham, postulou fosse reconhecido o divórcio pós-morte [3].
O entendimento foi adotado pela desembargadora Ana Paula Caixeta, que instalando a divergência, com os fundamentos da ementa acima referida, apontou a autonomia das partes, para o decreto do divórcio, com seu valor jurídico que deve ser respeitado, nada influindo o óbito superveniente.
O julgado consagrou a tese sempre defendida pelo jurista Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do IBDFAM, quando aceita, pela vez primeira, em data de 29/5/2018, no mesmo tribunal e por sua 7ª Câmara Cível, pela relatoria do des. Osvaldo Oliveira Araújo Firmo. O relator pontificou no sentido de reconhecer que “ante as singularidades do caso, a questão é inédita e, também em atenção ao princípio da primazia da sentença de mérito (artigo 4º, do CPC/2015), deve ser enfrentada nesta instância revisora”.
Indicou, então, que a morte do requerente não importou a perda do objeto da ação do divórcio, pela razão de que o casamento terminara antes, por vontade unívoca dos cônjuges, diferido apenas o ato de homologação, por omissão do juízo, denegatória da prestação jurisdicional clamada e reclamada.
Convém a transcrição, no que interessa, de excertos do Acórdão pioneiro, na Apelação Cível nº 1.0000.17.071266-5/001:
“Manifestação de vontade. Morte do cônjuge. Direito potestativo. Perda do objeto. Não ocorrência.
— É potestativo o direito do cônjuge ao divórcio. 2. A morte do cônjuge no curso na ação não acarreta a perda do objeto da ação se já manifesta a vontade dos cônjuges de se divorciarem, pendente apenas a homologação, em omissão do juízo.
— (…) Superado o debate acerca do divórcio e em curso o inventário dos bens deixados pelo cônjuge falecido, o juízo sucessório atrai a discussão sobre o pedido de partilha de bens”.
Anota-se, outrossim, no plano do Direito processual, a definição naquele julgamento, quanto ao pedido de substituição processual, de que “em tese, o espólio é parte legítima para pedir a declaração do fim do casamento do de cujus pelo divórcio, se já exaurido o exercício do direito em vida, pelos cônjuges”.
No mais, cumpre referir a importante lição jurisprudencial que dele se extrai, no tocante a duas premissas de base: 1) o divórcio é um direito potestativo; 2) cabe deferi-lo em prontitude da jurisdição, com imediato julgamento parcial de mérito ou em sede de prestação liminar, com o divórcio concedido in limine. Nessa diretiva, a desembargadora Alice Birchal, integrando a turma julgadora, destacou, com precisão:
“1) É irrefutável o argumento de que o divórcio é um direito potestativo, nos termos da redação dada ao §8º do artigo 226, CR/88 pela EC/66 que, exercido, torna obrigatório o julgamento de procedência deste pedido, ainda que o autor tenha falecido após o ajuizamento da ação, pois a pretensão foi por ele formulada ao juízo competente para tanto e, com sua morte, seu espólio tem interesse processual, porque o resultado do divórcio pode influenciar no julgamento das questões levadas ao juízo sucessório, o inventário;
2) Incontroverso o pedido de divórcio, cujo julgamento antecipado de parte dos pedidos é permitido. deveria ter sido imediatamente julgado pela instância anterior. Correto o Relator quando afirma que o juízo a quo negou jurisdição ao não homologar o pedido de divórcio, imediatamente…(…)”.
A jurisprudência do divorcio post mortem como um direito potestativo tem os precedentes do Tribunal de Justiça paulista, valendo referir os julgados mais recentes:
“Divórcio litigioso. Falecimento do cônjuge.
— Sentença de extinção sem julgamento do mérito. Apelo do autor. A morte de um dos cônjuges no curso da ação não acarreta a perda de seu objeto se já manifesta a vontade de um dos cônjuges de se divorciar. Direito potestativo ao qual a parte contrária não pode opor qualquer resistência.
— Possibilidade de decreto do divórcio post mortem, com efeitos retroativos à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. – Precedente. Ação procedente. Recurso provido” (TJ-SP – AC: 10002887020208260311 SP 1000288-70.2020.8.26.0311, Relator: Desa. Mary Grün, Data de Julgamento: 2/10/2020, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 2/10/2020).
“(…) Princípio da ruptura do afeto. Direito cujo exercício somente depende da manifestação de vontade de qualquer interessado.
— Hipótese constitucional de uma rara verdade jurídico-absoluta, a qual materializa o direito civil-constitucional, que, em última reflexão, firma o divórcio liminar. Particularidade que suprime a possibilidade de oposição de qualquer tese de defesa, salvo a inexistência do casamento, fato incogitável. Detalhe que excepciona, inclusive, a necessidade de contraditório formal.
— Possibilidade de decreto do divórcio post mortem, com efeitos retroativos à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Precedentes. Ação procedente. Recurso provido” (TJ-SP – AC: 10325357420208260224 SP 1032535-74.2020.8.26.0224, Relator: Des. Rômolo Russo, Data de Julgamento: 28/7/2021, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/7/2021).
“Divórcio litigioso. Falecimento de cônjuge após o ajuizamento da ação (Divórcio post mortem). Decretação do divórcio com eficácia retroativa a data do requerimento da petição inicial. Cabimento. Iniciativa de dissolução matrimonial adveio da parte recorrida. Existência de separação de corpos pelo prazo de três anos.
— A morte de um dos cônjuges no curso da ação não acarreta a perda de seu objeto se já manifesta a vontade dos cônjuges de se divorciarem. Divórcio é direito potestativo (Emenda Constitucional 66/2010).
— Ilegitimidade de parte. Afastada. Exercício matrimonial já exaurido pelos cônjuges. Parte recorrente é o espólio do de cujus. Falta de interesse de agir. Afastada. Existência de consequências sucessórias no inventário dos bens da falecida. Impossibilidade jurídica do pedido. Afastada.
— Divórcio é aperfeiçoado desde o ajuizamento da ação com a manifestação de vontade. Sentença reformada. Recurso provido” (TJ-SP – AC: 10245041020198260577 SP 1024504-10.2019.8.26.0577, Relator: Des. Jair de Souza, Data de Julgamento: 27/7/2020, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/7/2020).
Pois bem. Não se descura de que o pedido de divórcio que compete aos cônjuges com exclusividade (artigo 1.582, do CC), constitui um direito potestativo de cada um deles, tudo a não exigir contraditório ou dilações indevidas, em garantia de eficiente prestação de justiça.
Bem de ver diante da origem etimológica do vocábulo potestativo, o seu significado latino de poder: potestas, potestatis; de onde se extrai a qualidade potestativa, pelo exercício do poder que o direito confere, ou mais precisamente, um direito revestido de poder – potestativus. A doutrina tem se empenhado para além de definir o direito potestativo, em apresentá-lo como um rico instituto jurídico que ganha a sua frequente aplicação jurisprudencial, ensejadora de maior segurança jurídica [4].
O divórcio é uma das constatações mais importantes das características do direito potestativo, merecendo, por isso mesmo, uma prática mais intensa de sua aplicação liminar.
Em outro giro, retenha-se, afinal, como ponderação maior, os efeitos da E.C. 66/2010, que afastaram as exigências temporais da separação de fato, mormente aquela por mais de dois anos, como dispunha o artigo 1.580, §2º, do Código Civil. Serviria, antes da emenda constitucional, como elemento jurígeno para o divórcio direto.
Os atuais efeitos da separação de fato são instantes e colimam para os fins da união estável, independentemente do divórcio decretado, como situação jurídica consolidada que obsta a confusão de bens. Ou seja, o status de união estável tem sido admitido, quando pessoa casada tiver rompido a sociedade conjugal, estando separada de fato, não obstante esta mesma sociedade venha somente ser dissolvida pela separação judicial, a teor do ditame vetusto do artigo 1.571, inciso III, do Código Civil.
Lado outro, de igual diretiva, a mesma separação de fato, em igual prazo (o de mais de dois anos), não conferindo direito sucessório ao cônjuge sobrevivente, salvo se essa convivência se tornara impossível sem sua culpa (artigo 1.830 do Código Civil).
De tudo se observa urgente, portanto, não apenas se admitir o divórcio post mortem, sob a mirada processual da não perda do objeto da ação ajuizada, diante da morte superveniente de um dos cônjuges, no curso do processo, como principalmente, o cabimento da ação de divórcio post mortem diante da separação de fato preexistente.
Essa maior latitude tem sido defendida por Rodrigo da Cunha Pereira quando sublinha que a inexistência da lide não desnatura o fato jurídico fundamental e determinante, o da separação de fato com os seus efeitos jurídicos inafastáveis, de modo a permitir, diante da incontroversa realidade fática e jurídica, a possibilidade do pedido do divórcio após a morte. Com pertinência ímpar, para a maior segurança jurídica do direito das partes e dos herdeiros e da defesa de interesses patrimoniais
Eis a questão aqui posta: os precedentes e a melhor doutrina recepcionam, com exatidão, o divórcio post mortem, na vida do Direito.
Fonte: Consultor Jurídico