A atual pandemia impactou fortemente a relação Fisco-contribuinte: as receitas públicas decorrentes de tributos são mais necessárias do que nunca no enfrentamento à Covid-19 e na manutenção do sistema de saúde, ao passo que os contribuintes sofreram (e ainda continuam sofrendo) inúmeras perdas econômicas, com a diminuição significativa de receitas e das previsões de faturamento.
Para melhor ilustrar a situação, estudos da Confederação Nacional da Indústria e do Sebrae referentes a março e abril de 2020 evidenciam, respectivamente, que as indústrias tiveram uma queda de faturamento no patamar de 70%, somada ao aumento da inadimplência dos clientes em torno de 45% [1], ao passo que 89% dos pequenos negócios registraram queda significativa no faturamento mensal e 64% registraram queda no faturamento médio do período comparado [2].
No âmbito federal, embora algumas medidas tenham sido adotadas para minimizar o impacto econômico, elas ainda são muito tímidas e não tratam dos reais problemas. O aproveitamento de créditos não cumulativos de PIS/Cofins é um deles.
No atual momento, todas as empresas estão obrigadas, legalmente, a incorrer em significativas despesas para aquisições de materiais de proteção individual, de higienização e de desinfecção para colaboradores, clientes e para a própria estrutura física do estabelecimento, como forma de medida sanitária preventiva.
No caso do PIS e da Cofins, a apuração não cumulativa se traduz no fato de que o contribuinte possui o direito de descontar alguns créditos — possibilitados pela legislação — do montante a ser recolhido em favor do Fisco [3]. A bem da verdade, desde o advento deste sistema (Emenda Constitucional nº 42/2003), os contribuintes e a Receita Federal divergem sobre o grau e o alcance do direito creditório elencado nos incisos do artigo 3º das Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2004.
Tal divergência é verificada, sobretudo, na interpretação do inciso II, que elenca os bens e serviços “utilizados como insumos na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou serviços destinados à venda“. A necessidade de haver contato físico, alteração química ou desgaste do insumo com o próprio bem em produção — entendimento que vigorou por muito tempo na Receita Federal — é um exemplo disso (Instruções Normativas SRF nº 247/2002 e nº 404/2004).
Evidentemente, tal situação viria a ser enfrentada pelos tribunais superiores mais cedo ou mais tarde. E assim ocorreu em fevereiro de 2018, quando a 1ª Seção do STJ julgou o Recurso Especial nº 1.221.170/PR [4], interposto por uma indústria alimentícia contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Alegava o contribuinte que a correta interpretação do termo insumo deveria alcançar tanto as despesas gerais comerciais quanto os custos gerais de fabricação, imprescindíveis no deslinde da atividade produtiva. Ao final do julgamento, os ministros definiram o conceito de insumo a ser empregado nas Leis 10.637/02 e 10.833/03, para fins de aproveitamento de créditos, acolhendo parcialmente a argumentação do contribuinte.
Chamo a atenção do leitor para os principais fundamentos do acórdão, para que se tenha o exato entendimento da profundidade, extensão e contexto de aplicação do julgado:
“1) Os insumos devem ser compreendidos como todos aqueles bens e serviços que viabilizem o processo produtivo ou a prestação de serviço e que neles se empreguem direta ou indiretamente, de forma que sua subtração resulte na impossibilidade da produção ou da prestação do serviço, ou diminuam de forma significativa sua qualidade.
2) O conceito de insumos deve ser lido à luz dos critérios da essencialidade ou relevância, considerando-se a importância daquele bem incorporado à atividade econômica do contribuinte, afastando-se, nesse sentido, qualquer leitura restritiva fixada pela Secretaria da Receita Federal”.
Todos esses pontos estão bastante claros no voto da ministra Regina Helena Costa (pp. 79-81). Este também foi o sentido dado pelo ministro Mauro Campbell, em aditamento ao voto:
“Contudo, após ouvir atentamente ao voto da ministra Regina Helena, sensibilizei-me com a tese de que a essencialidade e a pertinência ao processo produtivo não abarcariam as situações em que há imposição legal para a aquisição dos insumos (v.g., aquisição de equipamentos de proteção individual — EPI). Nesse sentido, considero que deve aqui ser adicionado o critério da relevância para abarcar tais situações, isto porque, se a empresa não adquirir determinados insumos, incidirá em infração à lei. Desse modo, incorporo ao meu as observações feitas no voto da ministra Regina Helena especificamente quanto ao ponto, realinhando o meu voto ao por ela proposto (p. 141)”.
Ademais, é interessante observar que o ministro Campbell mudou seu entendimento inicial de que a essencialidade e a pertinência não abarcariam situações em que há imposição legal de compra de determinados insumos, uma vez que, “caso a sociedade empresária não adquira determinados bens para a sua atividade, incorrerá nas infrações legais, obstando o exercício desta atividade de forma regular”.
Pois bem, recorrendo-se a uma interpretação do sistema não cumulativo pautada na razoabilidade, e inserindo esse sistema no contexto de uma crise sanitária mundial, não há motivo minimamente justificável que impeça o contribuinte de reconhecer como insumos os materiais e equipamentos adquiridos única e exclusivamente por mandamentos normativos federais, estaduais e municipais.
Tomemos, como exemplo, a Lei nº 23.636/2020, de 17/4/2020, do Estado de Minas Gerais [5]. Ela estabelece que todos os estabelecimentos comerciais, industriais, bancários, rodoviários e metroviários forneçam máscaras de proteção a seus funcionários e colaboradores, e quaisquer outros recursos necessários de higiene aos clientes/frequentadores para a assepsia e prevenção da disseminação do coronavírus.
Com base nos fundamentos do STJ acima referidos, façamos um simples teste de subtração, com as seguintes premissas:
a) Um estabelecimento X exerce atividades comerciais ofertadas ao público em geral, com a mais vasta gama de mercadorias essenciais e não essenciais; por imposição legal, está obrigado a adquirir significativa quantidade de máscaras de proteção para seus funcionários e aumentar consideravelmente todos os cuidados de higiene para com eles;
b) Por imposição legal, X também está obrigado a adquirir materiais de limpeza, álcool-gel e outros produtos necessários em elevadíssima quantidade para a correta higienização de todos os recintos do estabelecimento no qual a atividade comercial é exercida, inclusive em seus setores de produção e fabricação (como padaria), e também dos clientes que adentram este estabelecimento;
c) Caso X não adquira e disponibilize tais materiais, além de ser multado em vasta quantia, poderá também, inclusive, perder seu alvará de funcionamento e, portanto, cessar definitivamente sua atividade regular naquela localidade.
A conclusão dessa singela hipótese é bastante clara: a utilização de matéria-prima e equipamentos obrigatórios de higienização é imprescindível e indissociável do exercício da atividade econômica deste contribuinte.
Somem-se a isso os atuais entendimentos do Carf — guiado pelo conceito de insumo fixado pelo STJ — referentes à possibilidade de apropriação de créditos de PIS/Cofins sobre despesas incorridas com publicidade e propaganda por empresa de comércio varejista, que não exerce qualquer atividade industrial (Acórdão 3302-008.120, 3ª Seção, 3ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, Rel. Corintho O. Machado, DJe 02/03/2020).
Frise-se: à luz do conceito de insumo definido pelo STJ e pautando-se em uma interpretação inserida no contexto da Covid-19, não há qualquer motivo razoável que impossibilite o aproveitamento de créditos não cumulativos sobre as despesas incorridas com aquisição de materiais de proteção individual, higienização e assepsia para colaboradores, clientes e para o próprio estabelecimento.
Fonte: Conjur